Quem tem medo de Richard Miskolci?

Os fantasmas do autoritarismo do “bem”.


“Have you ever seen a ghost? Well, I have”.

– Ulysses. James Joyce, p. 101, 1920.

 

O medo é um elemento definidor-comum em contextos sociais cujas histórias são marcadas por conflitos armados, autoritarismo, violências, perseguições e morte. A morte, aliás, como recurso último de estratégias totalitárias e fascistas, é menos um fato que se encerra quando a vida é ceifada, do que um empreendimento feito para silenciar. O que conecta a história contemporânea do medo ao recente ataque ao Professor Richard Miskolci? As bases para essa resposta, provisoriamente, devem incluir o exame do dissenso, e a recusa ao chamado “pensamento único”. Se é na divergência e no dissenso que as condições para o diálogo e as estruturas democráticas são produzidas, de modo que vozes distintas sejam ouvidas, silenciar uma parte delas é efeito imediato das ruinas dessa mesma estrutura.  

        Em seu mais recente livro, “Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada”, Richard Miskolci explora as disputas políticas e morais desde questões de gênero e sexualidade a partir da América Latina e do Brasil, em especial, cotejando as novas feições da esfera pública, espaço sociológico e relacional em que o autor complexifica pelo exame das estratégias de ativismo, que passam, por exemplo, por táticas bem-sucedidas de formação de importantes alianças como motor para a tão-almejada transformação social. Apesar disso, Miskolci explora um lado obscuro e igualmente intricado dessa esfera pública, em que pela confluência de elementos tecnológicos e midiáticos de nosso tempo, a ação política flerta com o neoliberalismo e com formas autoritárias que produzem novas racionalidades, comportamentos e estratégias sofisticadas de policiamento, apagamento, silenciamento e coerção. Inspirado pela tradição frankfurtiana e por sua própria trajetória de pensamento antinormativo, Miskolci retraça uma breve história do presente, demonstrando que campos popularmente associados ao autoritarismo, i.e., a extrema-direita, e a políticas que negam cidadania e reconhecimento a segmentos historicamente subalternizados, partilham, nas plataformas digitais, vocabulário e repertório de ação também comum a segmentos radicalizados e situados dentro de um espectro político considerado “progressista” e à esquerda. De escrachos públicos a cancelamentos e perseguições no ambiente de trabalho que levam a episódios de estafa mental, adoecimento e, em alguns casos, suicídios, tal esfera pública é o mote analítico para a compreensão do mal-estar gerado por redes que prometem democracia, informação e entendimento, das comunalidades entre direita e esquerda radicais, da balança nós-eu e das posições assimetricamente criadas entre “estabelecidos” e “outsiders”, que minam formas de solidariedade e impedem o desenvolvimento de laços morais regidos pela ética e pelos direitos humanos.  

            De acordo com a nota publicada pela Sociedade Brasileira de Sociologia, em apoio ao sociólogo, no dia 11 de novembro de 2023: no dia 07 de novembro uma manifestação coletiva veio à público, “Richard Miskolci foi declarado como persona non grata no âmbito epistemológico e ético do transfeminismo brasileiro. Consideramos que sua ofensiva acadêmica contra o conceito de cisgeneridade, bem como práticas transepistemicidas, tuteladoras e extrativistas, são irreconciliáveis com o enfrentamento à transfobia”. O recorte do trecho anterior foi lido publicamente em mensagem no “Seminário Identidades Trans e Travestis”, organizado pela revista Cult em parceria com o Sesc de São Paulo. Em postagens no Instagram, tal mensagem também aparecia em cards que indicavam um provável manifesto a ser enviado à UNIFESP, instituição onde o sociólogo leciona.

            É sintomático que o livro seja cancelado e seu autor, silenciado. “Persona non-grata”, no âmbito da diplomacia, conforme o dicionário Cambridge, diz respeito a “alguém que não é aceito ou bem-vindo em determinado país, ou que não é aceito ou tolerado por outras pessoas”. Essa estratégia, aliás, é muito parecida com tipos de “cancelamento” que povoam as redes sociais online, em que o autor, desde 2015, é alvo recorrente por parte de ativistas radicalizados e digital influencers. Embora seja plenamente possível debater a origem dos conceitos em bases que promovam novas interpretações, contingências e epistemologias, como é o caso de “cisgeneridade”, que não aprofundo nesse texto, é bem pouco provável que tal discussão floresça em um ambiente no qual a divergência não tenha passe-livre. A teoria em que todos concordam pelas homologias históricas e sociológicas, e cujas categorias estejam alinhadas e impeçam novos exames e críticas, é também um protótipo de leitura ou saudosista da própria história, ou fascista.

            Na cena política recente, tal recepção ao livro me lembrou as perseguições à filósofa e feminista norte-americana, Judith Butler, durante sua vinda ao Brasil em novembro de 2017. “Deixem as nossas crianças em paz!” foi uma das emblemáticas frases, reproduzida com tenacidade e em voz inflamada, do lado de fora da conferência de Judith Butler à Universidade Federal de São Paulo, ocasião na qual a filósofa apresentava seu livro “Caminhos da diversidade: judaicidade e crítica do sionismo”. O “cancelamento” da palestra por grupos fundamentalistas e ultraconservadores da extrema-direita nada tinha a ver com o contexto da apresentação, retendo a atenção aos temas de gênero e sexualidade, pelos quais a filósofa e feminista é particularmente conhecida no Brasil e internacionalmente. Naquele mesmo ano, houve uma petição no site CitizenGo que, em menos de seis dias, já havia incluído mais de 333 mil assinaturas para barrar a participação de Butler em eventos. Escrachos e tentativas de cancelamento também eram combinados a mobilizações organizadas para avaliar negativamente o Sesc Pompeia no Facebook, levando, inclusive, a um de seus episódios mais conhecidos: um boneco de Judith Butler vestido de bruxa ao lado das dependências do Sesc Pompeia, incendiado durante o ato. “Defendemos a democracia”, orgulhosamente protestavam os manifestantes contrários à palestra da filósofa, exaltando argumentos que giravam em torno da “liberdade de expressão” e da impossibilidade de Butler frequentar tais espaços. 

            Em que pesem as diferenças basilares entre os dois movimentos, tanto em termos históricos quanto sociológicos, elas guardam similaridades que são respondidas, curiosamente, pela própria conformação da nova esfera pública, rigorosamente cotejada em “Batalhas morais”. Se a vinda de Butler foi o mote à campanha do medo, de nós contra eles, em um contexto nacional que sedimentava as bases para um dos mais mortais governos da história recente da democracia, o que os ataques ao Professor Richard Miskolci nos ensinam? Há questões políticas e sociológicas comuns? Entre os empreendedores morais pela família e “contra o gênero” e aqueles que defendem o “gênero” e suas “epistemologias”, quais são as analogias possíveis para lermos a retórica da democracia sob o enquadramento da recusa, censura e do medo da diferença?

          Na literatura, mais do que em qualquer outro meio, o conflito pela interposição de diferentes racionalidades produziu um rico campo de analogias sobre o medo e, por consequência, também sobre o apagamento e a morte. Em Ulysses, o romancista irlandês James Joyce demonstrou que as regras morais pelas quais constantemente estamos tentando governar nossas vidas, escapam. A alegoria do fantasma é tanto efeito de um desejo por uma explicação transcendente das coisas que permanecem irresolvidas em meio aos chamados fatos sociais, como uma condição espectral que produz medo. Os fantasmas são a metáfora do medo pela conexão entre o real e o virtual, a ciência e o obscurantismo, a vida e a morte, o assombro e o espanto. Segundo Miskolci (2021), o medo foi domesticado no cotidiano das sociedades contemporâneas, por meio do cálculo do risco. As formas de temor predominantes, igualmente, podem ser caracterizadas como mistas. Não obstante às suas variações, como aqueles causados por catástrofes naturais e desastres provocados pela ação humana, ou pela recusa de cidadania, reconhecimento e participação política, os medos não se extinguiram completamente das sociedades à medida em que elas se tornaram mais técnicas em razão dos avanços tecnológicos e científicos. E alguns deles, sob a pecha de uma democracia errática, criaram também o autoritarismo do “bem” e seus empreendedores. 


 Referências

1.     Balieiro, FF. (2023). As novas feições do autoritarismo na era digital. Cadernos Pagu, (68), e236816. https://doi.org/10.1590/18094449202300680016

2.     Cyfer, I. (2018). A bruxa está solta: os protestos contra a visita de Judith Butler ao Brasil à luz de sua reflexão sobre ética, política e vulnerabilidade. Cadernos Pagu, (53), e185303. https://doi.org/10.1590/18094449201800530003

3.     “Manifestantes protestam contra e a favor de filósofa americana Judith Butler em São Paulo”. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/07/manifestantes-protestam-contra-filosofa-americana-judith-butler-em-sao-paulo.htm#:~:text=Cerca%20de%2070%20pessoas%20protestaram,estudo%20da%20teoria%20de%20gênero.

4.     Miskolci, R, & Pereira, PPG. (2018). Quem tem medo de Judith Butler? A cruzada moral contra os direitos humanos no Brasil. Cadernos Pagu, (53), e185300. https://doi.org/10.1590/18094449201800530000

5.     Miskolci, R. (2018). Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu, (53), e185302. https://doi.org/10.1590/18094449201800530002

6.   Miskolci, R. (2021). O medo da pandemia como questão sociológica. Sociologia & Antropologia, (11), 163-168. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752021v11esp9

 


João Paulo Gugliotti é doutor em sociologia. Pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo. Visiting Scholar do Departamento de Medicina Social e Saúde Global do King’s College London.

Seu trabalho cruza a história da epidemia de HIV-AIDS no Brasil, Estados Unidos e Inglaterra, com ênfase em diferenças de gênero, sexualidade, raça/etnia e idade.


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