As mães e a epidemia de AIDS


Créditos da imagem: Billy Howard, from the Billy Howard Photograph Collection at the Stuart A. Rose Manuscript, Archives, and Rare Book Library at Emory University.


"Enquanto trabalhava em 'Epitaphs for the Living: Words and Images in the Time of AIDS', um livro de retratos e escritos de pessoas com HIV/AIDS nos primeiros anos da pandemia, recebi um telefonema de uma mulher que perguntou se poderia incluir o filho dela, Ricardo, que havia morrido recentemente de AIDS, embora ele não pudesse fornecer nenhum texto escrito. Eu já tinha fotografado vários homens que me disseram que suas famílias os haviam repudiado por causa da doença, então esta mulher, Elena Tredo, me deu esperança de que as famílias pudessem estar lá para seus filhos (e filhas) e não rejeitá-los, apesar das pressões sociais que condenavam pessoas com AIDS como indignas de amor.
Perguntei-lhe se ela tinha uma fotografia de seu filho e se ela permitiria que eu a fotografasse segurando-a e escrevesse sobre seu filho. Seu texto, documentando as conversas que ela teve com seu filho durante o último ano de sua vida, foi profundamente comovente, passando da esperança ao desespero e um apelo final para que ela fornecesse flores – “muitas e muitas flores” – para seu funeral. O amor entre mãe e filho estava embutido em cada palavra.
Fiz uma promessa a cada uma das pessoas que compartilharam suas histórias comigo de que continuaria contando suas histórias enquanto pudesse, e ter Elena e Ricardo na capa deste livro é um sinal de promessa cumprida. Também fala sobre o impacto do amor de uma mãe e como esse amor pode transcender o fracasso da sociedade e abrir corações."

Billy Howard. Julho de 2023.


O novo livro de João Paulo Gugliotti “AIDS e envelhecimento homossexual: representações gerontológicas e a linguagem da patologia”, traz um olhar renovado às questões postas pela epidemia de AIDS, nos anos 1980 e 1990, a partir de pesquisa documental com arquivos históricos sobre grupos civis organizados e movimentos sociais.

Se a reflexão central em torno do livro pudesse ser resumida em poucas palavras, seria possível dizer que o livro de Gugliotti retraça a história da AIDS, sob a lente das produções em gerontologia (gerontologia social e biogerontologia), demarcando, ainda, como as respostas diferiram entre o ramo social e biológico da especialidade, ao passo que no ramo da gerontologia social, estiveram em cena atores historicamente marginalizados, que buscavam ampliar a visibilidade da AIDS para além das comunidades tradicionalmente expostas; por outro lado, no ramo da biogerontologia, pesquisadores, atores e produções científicas mobilizavam interesses programáticos por produção de fármacos, tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, reproduzindo, em grande medida, a linguagem moral da epidemia pela centralidade na homossexualidade masculina.

O corte entre as duas vertentes bio-social da gerontologia é o mote analítico que nos leva, em um segundo momento, para o grupo Mothers of Patients With AIDS (“Mães de pacientes com AIDS”, em português), em Nova Iorque. Gugliotti, em exame das coleções sobre HIV/AIDS disponibilizadas pela biblioteca Arthur and Elizabeth Schlesinger, incorpora novos materiais ao contexto histórico da epidemia, e discute como grupos de pacientes, familiares - mães, preponderantemente - e pessoas ligadas a movimentos sociais e civis organizados enfrentavam os dilemas éticos e morais postos pelas classificações médicas e sociais que eram, maiormente, preconceituosas e estigmatizantes. O contexto nova-iorquino da epidemia de AIDS, a partir das fontes documentais produzidas por Florence Rush - assistente social, feminista, ativista e uma das fundadoras do grupo de mães - é uma espécie de laboratório para a compreensão do impacto das classificações médicas e científicas entre grupos sociais que buscavam novas formas de tratamento, aconselhamento e apoio/suporte.

Com uma rica coleção de entrevistas, fotografias, relatos, correspondências e obituários, “AIDS: representações gerontológicas e a linguagem da patologia” é um convite a uma leitura insubmissa da AIDS, em que temas caros à sociologia, como agenciamento, estigma, ação social, memória, desvio, luto, cuidado, representação e morte, são revisitados e debatidos.

A fotografia de Elena Tredo e Ricardo, produzida pelo fotógrafo, escritor e diretor norte-americano, Billy Howard, estampa a capa do livro e ilustra as duas primeiras décadas da epidemia nos Estados Unidos, e o papel decisivo das mães na história da AIDS.

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“AIDS e envelhecimento homossexual: representações gerontológicas e a linguagem da patologia” está em edição pela EdUFSCar, com previsão de publicação em 2024.


João Paulo Gugliotti é doutor em sociologia. Pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo. Visiting Scholar do Departamento de Medicina Social e Saúde Global do King’s College London.

Seu trabalho cruza a história da epidemia de HIV-AIDS no Brasil, Estados Unidos e Inglaterra, com ênfase em diferenças de gênero, sexualidade, raça/etnia e idade.


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