Fatores de risco para demência

o Brasil está avançando?

Bruna Moretti Luchesi*



A demência é, atualmente, um dos principais problemas de saúde pública no mundo. Apesar da sua prevalência não ser tão alta como a de outras doenças crônicas, ela vem crescendo nos últimos anos, e estima-se que em 2015 existiam cerca de 47 milhões de pessoas com a doença, número que pode triplicar até 2050, especialmente nos países de média e baixa renda (LIVINGSTON et al., 2017). 

As maiores consequências da demência são a incapacidade e os custos ocasionados pela mesma, que geram um grande impacto no indivíduo cometido pela doença, na sua família e no sistema de saúde (LIVINGSTON et al., 2017). 

Um dos grandes desafios na prevenção da demência, é que ela é uma síndrome multifatorial, ou seja, é causada por diversos fatores, que variam de indivíduo para indivíduo. Alguns deles estão relacionados à própria genética individual, outros à questões ambientais, e alguns são modificáveis, ou seja, se diminuirmos a prevalência deles, podemos reduzir a prevalência de demência no futuro (LIVINGSTON et al., 2017). 

Uma publicação da “The Lancet Comission on Dementia Prevention, Intervention, and Care”, de 2017, identificou fatores de risco e proteção para a demência, visando consolidar os conhecimentos existentes e propor estratégias de prevenção (LIVINGSTON et al., 2017).  Na ocasião, identificou-se que 35% dos fatores de risco para demência são potencialmente modificáveis, e foi calculada a fração atribuível à população de cada fator, ou seja, a redução percentual em novos casos ao longo de um determinado período de tempo, se um fator de risco particular fosse completamente eliminado. Eles foram divididos nos que acontecem na juventude, na meia idade e na velhice. Os fatores identificados, e suas receptivas frações foram (Figura 1) (LIVINGSTON et al., 2017):

- Juventude: baixa escolaridade (até o ensino primário) – 8%

- Meia idade: perda auditiva – 9%, hipertensão arterial – 2% e obesidade – 1%

- Velhice: tabagismo – 5%, depressão – 4%, inatividade física – 3%, isolamento social – 2% e diabetes mellitus – 1%. 

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Figura 1.

Modelo de contribuição de fatores de risco modificáveis para a demência ao longo da vida.

LIVINGSTON et al., 2017.

Alguns fatores não foram comprovados como fatores de risco, mas há evidências da sua influência no desenvolvimento das demências. Eles são tratados no presente texto como secundários e são: má alimentação, consumo de álcool, traumatismo craniano, unilinguismo, deficit visual e distúrbios do sono (LIVINGSTON et al., 2017).

Porém, o trabalho publicado anteriormente foi desenvolvido com base em dados de países de alta renda; e em 2019, um novo grupo avaliou dados da Índia, China e de seis países da América Latina (Cuba, República Dominicana, México, Peru, Porto Rico e Venezuela). A porcentagem de fatores modificáveis foi maior, sendo 39,5% na China, 41,2% na Índia e 55,8% na América Latina (MUKADAM et al., 2019). 

Ainda em 2019, um novo estudo foi divulgado, com dados de Moçambique, Brasil e Portugal, onde foram avaliados sete fatores de risco modificáveis, sendo que a demência estava relacionada a 24,4% deles em Moçambique, 32,3% no Brasil e 40,1% em Portugal (OLIVEIRA et al., 2019). No Brasil, a fração atribuível à população de cada fator de risco foi: inatividade física (27,4%), baixa escolaridade (21,0%), tabagismo (8,1%), depressão (4,7%), hipertensão arterial e obesidade (4,3% cada) e diabetes mellitus (2,8%). Foi identificado que se a prevalência de cada fator for diminuir 20% por década, em 2050 haverá uma redução potencial de 16,2% da prevalência de demência (OLIVEIRA et al., 2019).  

Com base nesses dados, foi proposta por mim e por outros colaboradores, uma pesquisa visando identificar os fatores de risco modificáveis para demência em adultos e idosos do município de Três Lagoas – Mato Grosso do Sul, com o objetivo de verificar quais desses fatores são mais prevalentes, e assim poder traçar estratégias de prevenção. 

Foram avaliados 300 indivíduos, sendo 147 adultos entre 45 e 59 anos, e 153 idosos (acima de 60 anos). Apesar da prevalência de demência não ser alta em adultos, optamos por incluir esse grupo na amostra, pensando que os fatores de risco já podem estar presentes desde a meia-idade. 

Os participantes eram cadastrados em Unidades Básicas de Saúde com estratégia Saúde da Família (UBS com eSF) e residentes na comunidade. Foram conduzidas entrevistas domiciliares entre novembro de 2018 e junho de 2019, as quais contemplaram dados de caracterização sociodemográfica e foram avaliados os fatores de risco para demência principais e secundários. 

Cabe ressaltar que o projeto obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos para ser desenvolvido. 

Nós observamos que a maioria dos participantes era mulher (65,7%), não tinha companheiro (56,0%), tinha renda individual de até um salário mínimo (51,3%) e familiar de até dois salários mínimos (41,0%). 

Os fatores de risco principais que apresentaram maior prevalência foram: 

- inatividade física – 60,3%

- sintomatologia depressiva – 56,7%

- hipertensão arterial sistêmica – 56,7%

Dentre os restantes, verificamos que 47,4% eram obesos, 44,0% tinham baixa escolaridade (até quatro anos), 27,0% relataram estar isolados socialmente, 26,7% tinham diabetes mellitus, 18,7% eram tabagistas e 17,3% relataram deficitauditivo. 

Já entre os fatores secundários, destacaram-se: 

- unilinguismo - 98,0%

deficit visual - 84,7%

- consumo irregular de frutas (menos de cinco dias na semana) - 60,4%

- consumo irregular de verduras/legumes (menos de cinco dias na semana) - 53,5%

Além disso, verificamos 39,7% com transtornos do sono, 30,5% declararam consumo irregular de feijão, 23,3% usavam álcool, 22,3% faziam consumo regular de doces e 19,7% consumo regular de refrigerantes (cinco ou mais dias na semana) e 9,7% tiveram traumatismo craniano.

Assim, vimos que dentre os fatores principais, os três mais prevalentes são passíveis de intervenções, dentre as quais podemos citar: 

- incentivo à prática de atividades físicas: não envolve apenas incentivar, mas oferecer condições para que essa prática ocorra, como locais adequados e seguros (com bom estado de calçadas e de iluminação pública, disponibilização de parques e academias ao ar livre, entre outros) e orientação profissional adequada. Esse item é importante, pois é capaz de impactar nos três fatores mais prevalentes, já que, se incentivado, pode reduzir a inatividade física, os sintomas de depressão e a hipertensão arterial. 

- prevenção da depressão: aliado à prática de atividades físicas, o incentivo às atividades sociais e de lazer também são importantes. Isso inclui a participação em grupos (de aposentados, da terceira idade, de dança, de artesanato, dos amigos do trabalho, etc.), em centros comunitários, centros-dia, e em atividades de lazer, como praças, parques, shopping, entre outros. 

- rastreamento e detecção precoce da depressão: nesse tópico, ressaltamos a importância de que a depressão seja identificada precocemente, e tratada caso seja necessário. Muitas pessoas pensam que envelhecer está relacionado à tristeza, e acabam não dando atenção quando os adultos mais velhos ou idosos queixam de falta de interesse e prazer nas atividade rotineiras, ou até menosprezam esses sintomas. Isso pode fazer com que a identificação da depressão demore a acontecer, gerando um quadro de longa duração, e que não recebe tratamento adequado. Ressalta-se que esse rastreamento deve ser realizado na Atenção Primária em Saúde (APS), local onde há maior proximidade com a população. Além disso, vale ressaltar a importância do tratamento não farmacológico para a doença, que envolve, além das intervenções físicas e sociais já mencionadas, a psicoterapia; algo que ainda possui disponibilidade escassa no Sistema Único de Saúde. 

- prevenção da hipertensão arterial: aqui também estão incluídas, além da prática de atividades físicas, a alimentação saudável, a cessação do tabagismo e a redução do consumo de álcool. A alimentação saudável deve ser incentivada tanto no nível micro, por profissionais de saúde da APS, com a criação de hortas comunitárias, estimulo ao consumo de alimentos locais e de pequenos produtores, redução do consumo de produtos industrializados que tendem a ser mais caros e possuem uma qualidade nutricional menor; como a nível macro, com a criação e políticas públicas que desestimulem o consumo de alimentos industrializados. Além disso, políticas de cessação de tabagismo têm tido efeito positivo nos últimos anos, com a redução do número de fumantes, especialmente devido à falta de incentivo para a indústria do cigarro. O mesmo pode ser feito com relação ao consumo de álcool, já que as iniciativas no nosso país são mais tímidas nessa aspecto. 

- rastreamento e detecção precoce da hipertensão arterial: assim como a depressão, esta deve ser realizada na APS. Quanto antes a hipertensão for detectada e controlada, menores são as chances de haver alguma complicação cardiovascular. O tratamento também inclui medidas farmacológicas e não farmacológicas, as quais devem ser garantidas pelo Estado. 

Com relação aos fatores secundários, destacamos: 

- incentivo ao ensino de um segundo idioma: apesar das escolas terem investido no ensino, principalmente do idioma inglês, nos últimos anos, o percentual de pessoas que dominam uma segunda língua é muito pequeno no nosso país. 

- detecção precoce das deficiências visuais: sabemos que no Brasil o acesso ao profissional oftalmologista ainda é muito restrito e que no SUS existem longas filas de espera. Assim, esse acesso precisa ser melhorado, bem como o oferecimento de lentes corretivas (óculos), que deve ser de fácil aquisição ou gratuito. 

- incentivar o consumo de frutas, verduras e legumes: esses itens estão presentes em uma alimentação saudável, e seu consumo deve ser incentivado por meio de iniciativas supracitadas. Identificamos altas prevalências de indivíduos que consumiam esses alimentos menos de cinco dias na semana, sendo o consumo é indicado diariamente. 

Além disso, ressalta-se também a baixa escolaridade identificada no estudo, o que pode contribuir para reduzir a adesão e aderência a diversos comportamentos positivos relacionados à saúde.  

Respondendo ao questionamento inicial: o Brasil está avançando com relação aos fatores de risco para demência?

Com dados apenas de adultos e idosos da comunidade, residentes em um município do centro-oeste brasileiro, vemos que ainda existe muito trabalho a ser feito. 

Os fatores de risco estão relacionados entre si, sendo que o investimento em reduzir a prevalência de um deles, por exemplo, a inatividade física, pode ter consequências positivas em vários, como hipertensão, sintomas depressivos, obesidade, etc. 

Portanto, o Estado precisa dar uma atenção especial aos fatores de risco para demência, visando a redução da prevalência dos mesmos ao longo dos anos, o que pode culminar na redução da prevalência de demência no futuro. 

Vale destacar que haverá uma coleta de dados longitudinal do estudo, com dados avaliados após dois e quatro anos, para verificar mudanças na prevalência dos fatores de risco com o tempo. 

Além disso, a publicação de Livingston et al. (2017) foi revisada em julho de 2020, sendo que três novo fatores foram incluídos como principais: traumatismo craniano (3%), uso de álcool (21 ou mais unidades por semana) (1%) e poluição do ar (2%), e, atualmente, 40% dos fatores de risco são modificáveis (LIVINSTON et al., 2020), o que reforça a importância de se continuar estudando a temática. 


*Bruna Moretti Luchesi possui Graduação e Mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal de São Carlos (2008 e 2011, respectivamente). Doutorado em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem Fundamental da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP (2015). Pós doutorado no Programa de Pós Graduação em Enfermagem da UFSCar (2017). Atua desde a graduação em temáticas relacionadas ao envelhecimento e saúde do idoso. Atualmente é Professor Adjunto A na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, curso de graduação em Medicina, área Saúde Coletiva; bem como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem do CPTL/UFMS. Tem experiência em pesquisa na área de Enfermagem, com ênfase na Gerontologia/Geriatria, atuando principalmente nos seguintes temas: idoso, cuidadores de idosos, enfermagem da família, saúde do idoso na atenção básica, educação em saúde e cognição.


Agradecimentos

Agradeço à Prof ª Drª Tatiana Carvalho Reis Martins, colaboradora da pesquisa, aos alunos do grupo de pesquisa “Assistência, pesquisa, ensino e gestão em Saúde Coletiva da UFMS”, à UFMS pelo apoio financeiro, e a todos os participantes do estudo pela colaboração. 


Referências bibliográficas

LIVINGSTON, G. et al. Dementia prevention, intervention, and care. Lancet, v. 390, n.10113, jul 2017. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(17)31363-6

LIVINGSTON, G. et al. Dementia prevention, intervention, and care: 2020 report of the Lancet Commission. Lancet, v.396, p.413-446, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/ S0140-6736(20)30367-6

MUKADAM, N. et al. Population attributable fractions for risk factors for dementia in lowincome and middle-income countries: an analysis using cross-sectional survey data. Lancet Glob. Health, v. 7, p. e596–603, 2019. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X(19)30074-9/fulltext.

OLIVEIRA, D. et al. Reducing the Number of People with Dementia Through Primary Prevention in Mozambique, Brazil, and Portugal: An Analysis of Population-Based Data. Journal of Alzheimer’s Disease, v. 70, p. S283–S291, 2019. DOI: 10.3233/JAD-180636

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